Sebastião Diniz - Terramoto
O Terramoto de 1755
Em Mafra e Ericeira
Noticiado pela Gazeta de Lisboa
Sebastião Diniz*
Resumo
Além de realizar a compilação dos diversos artigos que noticiaram, na Gazeta de
Lisboa, o terramoto de 1755 em Mafra e na Ericeira, inclui um breve historial desse
mesmo jornal. Elabora, uma análise crítica jornalística que põe em evidência quais
os aspectos mais desenvolvidos e considerados pelos textos, detendo-se, igualmente,
na proporção e coerência das informações relativas aos ditos fenómenos
atmosféricos.
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* Licenciado em Filologia Germânica (Universidade de Lisboa).
A10 de Agosto de 1715 começou a publicar-se o Notícias do Estado do Mundo
que a partir do segundo número (17 do mesmo mês) passou a intitular-se Gazeta de
Lisboa. Incluía notícias de Portugal e do estrangeiro e das nomeações do governo.
Era seu redactor José Freire Monterroio Mascarenhas, razão pela qual estas gazetas
ficaram conhecidas como Gazetas do Montarroio. Homem viajado, com estudos
de matemática e filosofia, após dez anos na Europa volta ao reino e começa a publicar
as suas Gazetas Noticiosas com o subtítulo de Historia anual cronológica e
Política do Mundo, especialmente da Europa.
Segundo a carta de privilégio concedida pelo rei D. José, em 3 de Julho de 1752,
a Gazeta de Lisboa devia sair uma vez por semana, às quintas-feiras, contendo
cada número quatro quartos de papel. Era imposta a qualquer outra pessoa que se
metesse a imprimir algum dos ditos papéis a pena de 50 cruzados. Com a morte de
Monterroio, em 1760, a publicação sofreu uma interrupção, mas reaparecia no
mesmo ano, sendo concedido o privilégio da sua impressão e publicação aos oficiais
da secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, que escolheram para
redactor principal um dos seus colegas, o poeta Pedro António Correia Garção
(1724-1771), um dos fundadores da Arcádia Lusitana, em 1757. Correia Garção
desempenhou o cargo até à suspensão da Gazeta, em 3 de Julho de 1762, por ordem
do Marquês de Pombal. A Gazeta de Lisboa, então conhecida como dos oficiais de
secretaria, era publicada por conta destes, a fim de que pudessem assim receber
quantia suplementar, pois os oficiais dessa secretaria não percebiam alguns dos
emolumentos atribuídos aos colegas das outras secretarias de Estado.
Embora com uma existência acidentada, sujeita às várias convulsões dos tempos,
entre elas a ocupação francesa, o título de Gazeta de Lisboa manteve-se inalterado
até 30 de Dezembro de 1820. Depois alternou com outras designações, como
Diário do Governo, Diário da Regência, Crónica Constitucional de Lisboa, Gazeta
Oficial do Governo, Gazeta do Governo, Diário de Lisboa, algumas delas espelhando
claramente os figurinos políticos que a governação do país ia adoptando.
No que respeita ao terramoto de 1755, é curioso notar que a Gazeta de Lisboa,
de 6 de Novembro desse ano, apenas dedicava ao acontecimento uma notícia de
meia dúzia de linhas: "O dia 1º do corrente ficará memorável a todos os séculos,
pelos terramotos e incêndios que arruinaram uma grande parte desta cidade; mas
tem havido a felicidade de se acharem na ruína os cofres da fazenda real e da maior
parte dos particulares".
No número seguinte, de 13 do mesmo mês, ainda noticiava laconicamente que
"entre os horrorosos efeitos do terramoto [...] experimentou a ruína a grande torre
chamada do Tombo [...] e muitos edifícios tiveram a mesma infelicidade" 1. Só
mais tarde chegariam à redacção da Gazeta, enviadas dos vários pontos do país,
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1 Para a elaboração desta breve nota sobre a Gazeta de Lisboa consultámos: José Tengarrinha, História
da Imprensa Periódica Portuguesa, 2.ª edição, Lisboa, Editorial Caminho, 1989; Rocha Martins,
Pequena História da Imprensa Portuguesa, Lisboa, Editorial Inquérito, 1941; Nuno Rosado, A
Imprensa, Lisboa, Ministério da Educação Nacional, 1966.
Primeira página de um número da Gazeta de Lisboa, de 1756
notícias mais desenvolvidas relativas à extensão da tragédia. As que se reportam aos
efeitos do terramoto observados em Mafra e Ericeira são datadas de 15 de Fevereiro
de 1756 e de 4 de Novembro de 1756, respectivamente publicadas no n. 11, de 18
de Março, e no n. 46, de 18 de Novembro desse ano. Embora sem alusão expressa
ao acontecimento, mas por reflectir de maneira impressiva a mentalidade das gentes,
a devoção dos fiéis e a importância da Real Basílica de Santo António no imaginário
da população nesses tempos angustiados, incluímos ainda neste conjunto de
peças jornalísticas, com ortografia actualizada, a notícia publicada no n. 43, de 28
de Outubro de 1756.
***
Mafra, 15 de Fevereiro de 1756
No primeiro de Novembro de 1755 pelas nove horas e 40 minutos estando toda
a atmosfera muito clara e serena se sentiram sucessivamente neste Real Convento
três formidáveis abalos de terra, durando cada um seis minutos, todos com igual
violência e agitação e com um estrondo ainda maior do que, o que fazem muitas
carruagens, quando impetuosamente correm por calçadas. Viu-se tremer este magnífico
edifício, ora abater-se e elevar-se, ora inclinar-se de uma para outra parte,
como embarcação nas ondas, com pavor, e assombro, de quem a via. Porém, ficou
este admirável todo sem notável ruína, e sem ofender pessoa alguma estando todo
cheio de gente. Estalaram muitas arestas de preciosos mármores, e no zimbório se
despegou um fogacho, ficando suspenso na ponta do ferro, que lhe servia de base;
e quando os Oficiais, passados alguns dias, o seguraram no seu lugar, disseram
que só por milagre podia tão grande peso estar inclinado sem cair. Da torre da
parte do Sul caíu sobre o Palácio uma pirâmide, e rompeu somente a primeira
abóbada; no corpo alto da parte do Palácio, que fica ao Norte e no jardim principal
caíram duas, mas sem prejuízo; todas as paredes mestras ficaram ao nível sem
abertura alguma, mas algumas das interiores mostram na superfície algum sentimento.
Nos Palácios racharam algumas ombreiras e travessas das portas, e se
abateu uma das abóbadas nas enfermarias. Na praça contígua ao Convento se viu
uma cesura na terra abatida e desfeita, por onde se entendeu que respiraram os
mistos deste espantoso fenómeno: a cesura tinha um pé de largura. Ficou muito
danificada a Igreja Paroquial de Santo André, e o Palácio do Visconde de Ponte de
Lima, e algumas das casas da povoação postas por terra. O mesmo se vê nas mais
Igrejas, e lugares circunvizinhos.
No mesmo dia jejuou toda a Comunidade a pão, e água, e esta se aumentava
com as lágrimas, que todos choravam sentados em terra. Logo se expôs o
Santíssimo Sacramento, ocupando-se uns Padres [sic] a cantar o Terço e Ladainhas
e outros em confessar a inumerável gente, que concorria, que de tarde se formou
uma devotíssima Procissão de Preces com as Imagens de Cristo Crucificado e do
Seráfico Padre São Francisco e ultimamente o Prelado com o Santo Lenho. Todos
os Religiosos e muitos seculares foram descalços uns com cordas, outros com
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pedras ao pescoço recitando em tom lúgubre o Salmo Miserere mei Deus. Ao recolher
da Procissão houve Sermão, que pregou extemporaneamente o P. M. Fr.
António de Santa Ana, Ex Definidor, discorrendo com grande espírito e naturalidade
sobre o texto do Capítulo X do primeiro livro de Esdras: Sedit omnis populis
in platea domus Dei trementis pro peccato [...] et surrexit Esdras sacerdos, dixit ad
eos; vos transgressi estis [...] et nunc confessionem Domine Deo Patrum vestrorum,
et facit placitum ejus. Finalizado o Sermão já de noite se retirou a
Comunidade para os Dormitórios, onde tomou três disciplinas muito rigorosas e
dilatadas. No Domingo, e por toda a semana seguinte se continuaram as procissões
e preces com as mesmas penitências e permitiu Deus, que os abalos de terra, que
depois sentimos, todos foram leves e instantâneos.
Ericeira, 18 de Março de 1756
Na última semana de Outubro do ano passado observou-se o mar notavelmente
enfurecido; e os pescadores temendo alguma grande tempestade, levaram os seus
barcos para o alto da calçada que sobe da praia para a Vila. Com este receio chegámos
ao primeiro de Novembro, em que entre as nove e as dez horas da manhã
sentimos por espaço de seis minutos um violento abalo de terra, com que todos os
moradores consternados fugiram das casas e das Igrejas sem saberem para onde.
Arruinaram-se todos os edifícios, as Igrejas e Ermidas sem dano notável; mas o
mar andava tão alto que na ressaca levou alguns barcos, que estavam na calçada,
e assim durou todo o dia.
Fez-se uma devota procissão de preces e todos os Sacerdotes ofereceram a
Missa a São Sebastião para que nos alcançasse de Deus cessar este castigo e nos
livrasse de contágios, que se temiam dos vapores, que exalava a terra.
E como os terremotos se repetiram ainda que levemente veio o Padre Mestre Fr.
António de Santa Ana pregar Missão seis dias e começando na segunda-feira dispôs
o povo com confissões e penitências para a Comunhão geral que houve no
Domingo. E na passada sexta-feira ordenou uma Procissão de preces, que se fez da
maneira seguinte.
Saiu da Paróquia o Padre Missionário descalço com o Crucifixo da Missão na
mão direita, e na esquerda uma caveira, na cabeça coroa de espinhos, e corda no
pescoço em silêncio; seguiam-se 15 meninos todos em linha; os primeiros cinco
vestidos de branco, descalços, mãos levantadas, olhos no chão e coroados de silvas;
o último destes levava no ombro um rótulo que dizia Mistérios Gozosos. Os
segundos cinco com opas encarnadas e com a mesma penitência e o último com o
letreiro no ombro em que se lia Mistérios Dolorosos. Os últimos cinco com túnicas
azuis, e iguais mortificações e tarja no ombro, que declarava os Mistérios
Gloriosos.
Seguia-se depois o pendão de Maria Santíssima Nossa Senhora e os meninos de
três Escolas em duas linhas descalços, coroados de silvas, cordas ao pescoço como
o Missionário, rosários nas mãos; cantando a Ladainha de todos os Santos,
Irmandades e Confrarias com as suas capas; as Imagens de São José, de Nossa
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Senhora da Soledade, o Pároco com o Santo Lenho e ultimamente o companheiro
do Padre Missionário com as silvas e corda, levando um Crucifixo arvorado e
junto dele um coro de Música cantando os três primeiros versos do Salmo Miserere
mei Deus, prostrando-se todos em terra quando se dizia Senhor Deus misericórdia,
para o que se fazia sinal com uma Campainha. Acompanhava esta Procissão a
Vila toda e inumerável gente dos lugares circunvizinhos, muitos descalços e outros
com rigorosas penitências [Gazeta de Lisboa, n. 11, 18 de Março de 1756]
Mafra, 23 de Outubro de 1756
Achou-se esta Vila até 15 de corrente cheia de Perinos [sic], que para ganharem
o grande Jubileu concorreram a visitar a sagrada, e real Basílica de canto
António. Foi tão numerosa a sua multidão, que os Confessores foram muitos dias
precisados a administrar até à noite o Sacramento da penitência. Muitas pessoas
para maior merecimento tiveram a mortificação de virem descalços.
A 18 pelas 10 horas da manhã chegaram Suas Majestades fidelíssimas, e Suas
Altezas ao seu real Palácio desta Vila. Logo na mesma tarde foram à Tapada, onde
mataram 11 rezes. No segundo dia 17 [sic] e no terceiro, em que se recolheram
para Belém mataram de caminho sete. A sua ausência infundiu neste Povo uma
profunda saudade. O Rei nosso Senhor mandou distribuir grossas esmolas por muitas
pessoas pobres [Gazeta de Lisboa, n. 43, 28 de Outubro de 1756].
Mafra, 14 de Novembro de 1976
No Domingo último dia do mês de Outubro fizeram os Religiosos do Real
Convento desta Vila, uma exemplaríssima procissão de penitência, que discorreu
pelas principais ruas dela, implorando a Divina misericórdia para preservar dos
terremotos a este Reino. Iam todos descalços, uns com grossas pedras nos ombros,
outros com cordas ao pescoço, e nesta mesma forma, e descalço o Excelentíssimo
Bispo de Macau. Acompanharam esta procissão os Irmãos Terceiros de S.
Francisco com um andor que representava a impressão das Chagas. Os Confrades
do Rosário da Virgem Santíssima Nossa Senhora com a sua Imagem e uma inumerável
multidão de Povo. Recolhendo-se à sua Igreja pregou um dos Religiosos,
tomando por tema do seu Sermão as palavras do capítulo III dos Trenos de
Jeremias: Misericórdia Domini, quia non sumus consumpti, quia non defecerunt
miserationes ejus; e ponderando com grande espírito e naturalidade todas as causas,
que podiam concorrer para um castigo tão rigoroso. As suas expressões causaram
uma grande compunção em todos os ouvintes. De noite tomou toda a
Comunidade uma áspera disciplina por espaço de meia hora.
No dia seguinte em que se celebrou a festa de todos os Santos, esteve o
Santíssimo exposto no seu trono, desde a hora de Prima até a Noa, em que o
mesmo Senhor foi levado em procissão pelos Claustros entoando-se primeiro com
a suave harmonia de três órgãos e os alegres repiques de todos os sinos, o Te
Deum Laudamus em acção de graças, pelo especial favor que fez a Divina
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Clemência de conservar sem ruína o mesmo Real Claustro [Gazeta de Lisboa, n.
46, 18 de Novembro de 1756].
***
Deixamos às competências do historiador e do sociólogo a tarefa de proceder ao
enquadramento epocal destas notícias e de extrair as conclusões pertinentes. Aos
olhos do leitor comum, de hoje, ressalta sobretudo a conjunção dos dois pólos de
interesse: o profano e o religioso. O primeiro reporta-nos ao conhecimento sensível
do fenómeno sísmico, com a referência a alguns danos causados no Convento, no
Palácio, na Igreja de Santo André no Palácio do Visconde de Ponte de Lima, algumas
casas da povoação postas por terra e o mesmo se vendo nas igrejas e lugares
circunvizinhos. Surpreende-nos, por excessivo, o registo da duração dos três abalos
de terra sentidos sucessivamente em Mafra, cada um de seis minutos. Atribuímos a
exagero de descrição ter o correspondente (ou alguém por ele) visto "tremer este
magnífico edifício, ora abater-se, e elevar-se, ora inclinar-se de uma para outra parte
como embarcação nas ondas, com pavor e assombro de quem a via" (a embarcação?)
2.
Quanto aos estragos sofridos pela Vila da Ericeira a notícia é mais parca em
informações, generalizando que se arruinaram os edifícios todos, as Igrejas e
Ermidas sem dano notável (note-se a imprecisão dos termos) e o mar na ressaca
levou alguns barcos, que estavam na calçada. Não se encontra referência a danos
pessoais nas duas terras. De facto, nas Memórias Paroquiais de Santo André de
Mafra lê-se que "em toda esta vila e termo, não pereceu nem perigou pessoa
alguma, sendo, neste sentido, uma das terras mais bem livradas" 3.
Bem diferente é a atenção dedicada pelo correspondente da Gazeta de Lisboa às
celebrações religiosas que se seguiram tanto em Mafra como na Ericeira. Enquanto
a notícia relativa à primeira vila dedica 34 linhas à descrição dos efeitos do terramoto
e 27 às cerimónias religiosas, a secção relativa à Ericeira ocupa 55 linhas,
das quais 13 reservadas ao sismo e 40 às cerimónias religiosas, ou seja 75% do
relato dedicado a esta vila.
O aparato cénico das procissões, descrito pormenorizadamente, sobretudo a procissão
da Ericeira; as manifestações de consternação e penitência bem como o
empenhamento que devotos e penitentes punham nestas cerimónias, enfatizam tanto
a aparência de fervor religioso e de temor a Deus de todo um povo, como também
o espírito do tempo. Já duas semanas antes do trágico acontecimento, em notícia
enviada de Mafra sobre as celebrações do Jubileu pleníssimo concedido pelo Papa
Clemente XII, o correspondente da Gazeta de Lisboa notava "que não tem dimi-
2 De facto, António Ribeiro dos Santos escreve na Carta sobre as coisas notáveis do Edifício de Mafra,
de 1805: "[...] jogaram tanto as torres, que os sinos, que só depois de grandes balanços se podem tocar,
tocaram por si mesmos". Paulo J. S. Barata, Carta sobre as coisas notáveis do Edifício de Mafra: Um
relato inédito de 1805, in Boletim Cultural'95, Mafra, Câmara Municipal, 1996.
3 Sérgio Gorjão, Memórias Paroquiais, in Boletim Cultural'96, Mafra, Câmara Municipal, 1997, p. 335.
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nuído nada a devoção dos fiéis" 4. Imagine-se o aumento do fervor religioso após a
catástrofe!
A terminar estas breves impressões de leitura parece-nos interessante deixar
registado que a atenção dada por este correspondente local aos aspectos religiosos,
sobretudo às manifestações exteriores da fé, não é a nota dominante das notícias
sobre o terramoto de 1755, enviadas de outros pontos do país e publicadas pela
Gazeta de Lisboa até 27 de Janeiro de 1757.
4 Ibidem, n.º 44 (30 Out. 1755).