Canteiro de Borba
Canteiro de Borba
Relação em Trovas da Real obra de Mafra,
feita no primeiro de Janeiro de 1732
Linda Borba mais querida
Paraíso deleitoso
Que de ti me apartei
Com saudades penoso.
Se te não tornar a ver,
Desta despedida digo
a Deus, que já me aparto,
A Deus, que já me retiro.
Com que juízo te animas
Atrevido pensamento
Quereres decifrar a Mafra
Sem teres documento.
Não sabes que é desvario
Cometeres temeridades
Que nem ainda o mais sábio
Acerta aqui falar verdades.
Se tu pintaras como Apeles
Souberas como Salomão
Puderas entrar talvez
Na empresa com mais razão.
Mas se tu nunca foste
Gramático ou latino
com que razão queres logo
cometer tal desatino.
Eu te dera um conselho
Que não falasses em tal
Que nem ainda o mais discreto
Explica obra tal.
Porque cometer impossíveis
Vejo te não é dado
Começar e não acabar
É juízo mui errado.
Eu sempre ouvi dizer
Se a ideia me não engana
Que diz lá o adágio
Morra homem fique fama.
Assim que não tem remédio
Hei-de ir com a minha porfia
Hei-de decifrar a Mafra
Que assim mo pede a fantasia.
Ainda que não dei notícia
De todo este portento
Direi ‘té donde chegar
O meu fraco entendimento.
Tanto que avistei a Mafra
Disse como admirado
Este é o prodígio grande
Que a mim me trás enfadado.
Cheguei a Mafra de noite
Esperei que amanhecesse
Para ver estas reais obras
O que a todos aborrece.
Sim é uma vila tosca
Donde os moradores pareciam
E tanto que nos viam de repente
Como brutos se escondiam.
Tem uma linda Igreja
E belo templo sagrado
Invocação de Santo André
Do número do apostolado.
Tem um grave palácio
Que falar nele me resta
Defronte está a cadeia
A que chamam a Silvestra.
E as mais casas da vila
Por dentro e seus arredores
Mais parecem pardieiros
Que casas de moradores.
E seguindo minha jornada
Direito à obra real
Fui dar a uma casaria
Que dizem é o hospital.
Para falar nesta casa
Não sinto em mim talento
Que eu por minha fortuna
Nunca Ihe entrei dentro.
Logo fui à frontaria
Deste portento nomeado
Por certo é mais lindo
Do que me tinham contado.
Passemos mais adiante
E falemos no principal
Na miudeza desta obra
Que tem mais que ver, que contar.
Pelas escadas principio
Tão bem e adornadas
Que em baixo pegam em redondo
E em cima são quadradas.
De eu ver tal portento
Mui admirado fiquei
Em cada sete degraus
Um tabuleiro achei.
[falta esta linha]
Que de longe deve estar
Que só a Roma
A esta se pode comparar.
Tem quatrocentos passos de largura
Os mesmos tem de comprimento
Esta tão formosa frontaria
Que faz pasmar o entendimento.
Na mesma vi cinco arcos
De quinze palmos de largo
Com seus portados no meio
Que a formosam muito bem.
E na primeira cimalha
Cinco janelas vi estar
Guarnecidas de vidraças
Que a muitos faz abismar.
Tem uma pedra sacada
Esta janela do meio
Trinta palmos de comprido
E de largo tem onze e meio.
Por baixo e por cima
Tem doze colunas a maravilha
Donde a máquina de frente
Está toda suspendida.
E [m] os capitéis que tem
As colunas em que tenho falado
Estão belos serafins
Em um vistoso folhado.
No ponto do frontispício
Está uma flor mui formosa
Esta coisa para ver
Parece coisa pasmosa.
Tem um óculo no meio
De quinze palmos alargado
Esta coisa para ver
De flores bem adornado.
No óculo está Deus menino
Nos braços da Virgem Santa
Também se vê adorado
De um São Pedro de Alcântara.
Bem podemos com razão
Tirar-lhe mui bem o chapéu
E dizer-lhe com devoção
Gloria in excelsis Deo.
Não tem dúvida assim o fazia
A Sra. Santa Helena
À Virgem também Ihe rezemos
Ave Maria gratia plena.
Meu glorioso São Pedro
Rogai ao menino Deus general
Nos livre dos inimigos
Para sempre de todo o mal.
Em o remate da frente
Em que já tenho falado
Está uma cruz de bronze
A ouro de Roma laureado.
Com seu calvário de pedra
E muito bem acabado
Com um serafim no meio
E um quartão em cada lado.
Vi duas torres mui altas
De quatrocentos palmos de altura
E também contando achei
Cinquenta de largura.
Quarenta e oito colunas
Contei em ambas as torres
E também em cada uma
Dois formosos demonstradores.
E no último banco de cima
Vi quatro óculos ovados
E mui lindos quatro serafins
Estão muito bem adiresados.
A maior parte destas pedras
Que têm estas duas torres
Tudo é obra de relevado
Feita por bons escultores.
Ainda não falei nos sinos
Agora quero falar
Pois quarenta Ihe contei
Em o primeiro andar.
E subindo mais acima
Contei oito em cada lado
Esperam por mais cinquenta
Contá-los por ora é escusado.
Um homem só os tocava
Com pés e mãos a um tempo
Bons minuetes por solfa
Com bastante entendimento.
Os engenhos da madeira
Melhores não podiam estar
Que até os bois puxavam
Para se porem em seu lugar.
Chamaram seis arquitectos
A dar sentido a este engenho
Mas um Custódio Vieira
O fez com grande empenho.
Esta máquina de madeira
Está com entendimento [var.: que é um portento]
Pois bem podem levar
Oito [var.: doze] pedras a um tempo.
Estas pedras em que falo
E as em que falarei depois
Por elas eu vi puxar
cento e cinquenta bois.
Pareciam estas alturas
Quererem subir ao planeta
Mas não se ouvia palavra
Senão vozes de trombeta.
Também está nessas alturas
Um galo em cima de uma bola
A mais da gente Ihe cantava
Vários tonilhos à sua moda.
Eu Ihes disse aqui a todos
Que cantassem pelo tom da reudaréu
Todos juntos me respondem
Cantando cucuxucu.
Quatro arrobas e meia tem
De bronze esta ave fatal
Deixemo-la para uma ceia
Que é carne que não faz mal.
Tem treze palmos de comprido
Desde o bico até ao rabo
Está para demonstrar os ventos
E o mostra com todo o garbo.
Este galo para subir
Trepou muitos poleiros
Para isso mandaram ajuntar
duzentos e cinquenta marinheiros.
Ainda mais alto está uma cruz
Por certo mui bem lavrada
Pela altura ser tanta
Parece estar no céu encaixada.
É necessário advertir
E eu Ihes faço advertência
A outra torre tem o mesmo
Na mesma correspondência.
As torres de Babilónia
Têm nomeada na altura
Também vós torres de Mafra
Tendes maior formosura.
Ó templo de Salomão
Aqui não temos que fazer
Ó Escorial de Espanha
Que não tens tanto que ver.
Bem te podes publicar
Por maravilha maior
Que entre as oito que se contam
Tu Mafra és a melhor.
Em a porta principal
Duas colunas estão
Parecem enquanto à vista
Não serem feitas por mão.
E os capitéis que têm
Neles não posso falar
Que a filigrana deles
Se não pode explicar.
Para falar na igreja
Não sinto em mim talento
Porque esta maravilha
Quer maior entendimento.
Por baixo dela está
Aqui logo no princípio
Donde se enterram os frades
Que morrem lá no hospício.
E vede quando estes morrem
Sendo tão bem assistidos
Que será dos pobres paisanos
Que para lá vão remetidos.
Por não ser preguiçoso
Do que vi na igreja irei dizendo
A um Senhor crucificado
Me fui logo oferecendo.
Este Senhor é de madeira
Está na capela mor
mas El Rei diz que quer
Outro de pedra maior.
Olhei para trás e bem vi
Sobre a porta principal
Estar o melhor debuxo
Que se pode debuxar.
Parte da sua grandeza
Agora quero explicar
Pois tem todo o necessário
Para um católico adorar.
Tem um lindo crucifixo
Nesta pedra debuxado
Que o rapaz que o fez
Merecia ser dourado.
Levantando os olhos vi
Açúcenas mui floridas
Em cada janela duas
Em pedra as vi embutidas.
O tecto desta igreja
[A]o longe tem nomeada
...da é de pedra branda
...azul e encarnada.
Duas pedras pretas
Vi dentro da capela mor
Que dizem os que as têm visto
Não haver espelho melhor.
Sete palmos tem de largo
E dezasseis de altura,
Quem a elas se chegar
Verá sua compostura.
[O]nze capelas contei
Neste templo real
Que enquanto o sol rodeia
Não há coisa tão igual.
E os altares que têm
É uma pedra maciça
Que foi gosto del Rei
O ser toda inteiriça.
Vinte e cinco altares tem
Vinte e seis com o da sacristia
E os mais repartidos nas capelas
Todos estão com bizarria.
Vinte e quatro capitéis
Tem a igreja por banda
E as colunas quadradas
Abertas de meia cana.
Agora falo nos órgãos
Que em seis partes estão
Tocando todos a um tempo
Não há outra suspensão.
[falta esta linha ]
Santo ou santa em figura
Tudo está pintado em quadros
E em todos está a Virgem pura.
E da capela colateral
A outra correspondente
Cento e cinquenta palmos tem
Se a ideia me não mente.
E da capela maior
‘Té à porta principal
Duzentos e cinquenta são
Sem nada Ihe acrescentar.
Fui às serventias por dentro
E as paredes de redor
Seis escadas Ihe contei
Todas feitas em caracol.
E subindo por uma acima
Por donde não tinha ido
Vi um largo espaçoso
De varandas guarnecido.
Dali vi andar soldados
Trabalhando com habilidade
Para meterem um outeiro
Em um profundo vale.
Trabalhando esta gente,
Em um penhasco ser devia
Com grandes tiros de fogo
A penha se desfazia.
Cargos de muitas cabeças,
Herdaste penha forte,
Muitos que nela andavam
A penha lhe causou a morte.
Também vi uma [a]lameda
Junto a esta uma nora
De aciprestes cercada estava
[a] alameda em roda.
[falta esta linha]
Entre os palácios e convento
E juntamente com as portas
Passam de cinco mil e cento.
Das pedreiras vêm para esta obra
Cinco cartas de pedras
Azuis, pretas, encarnadas,
Brancas, também amarelas.
Entrei a ver o de profundis
Aqui pasmam os sentidos meus
É o lugar donde os frades
Antes de jantar louvam a Deus.
Também vi o refeitório
Está com toda admiração
Daqui repartem os frades
Com os pobres da sua ração.
À cozinha fui também
Está com toda a bizarria
Toda guarnecida de ferro
E de formosa lajaria.
Os frades deste convento
Não os posso declarar
Que não há número certo
Para se poderem contar.
A quantia por agora
Muito passa de duzentos
Mas o número por inteiro
Me dizem hão-de ser trezentos.
Ó Mafra dá-me licença
Que logo em ti falarei
Que quero dar notícia
Da boa vinda del Rei.
Em dezanove de Outubro
Fez El Rei sua jornada
A visitar a grande obra
Por todo o mundo nomeada.
Seus irmãos foram com ele
Que eu mesmo o presenciei
E seu filho que há-de ser
Pela graça de Deus Rei.
Era ainda de madrugada
Ainda não amanhecia
Vi os infantes formados
Com toda a cavalaria.
Que estava esperando
Pela pessoa real
Filha del Rei do Império
Rainha de Portugal.
Entraram dentro da igreja
Com muito grande alegria
Muito bem acompanhados
De bastante fidalguia.
Também trazia consigo
A senhora D. Mariana
Esposa do senhor D. José
E filha del Rei de Espanha.
Sagrou a sua igreja
Este tão grande Monarca
Com Bispos e cardeais
E mais o senhor Patriarca.
Havia grandes riquezas
De prata e ouro fino
Pérolas e diamantes
E cristal mui cristalino.
Havia copa de prata
E a mais dela sobredourada
Dilúvio de seda branca
Que a todos admirava.
Graves ornamentos havia
De tela e de tesum
Com grandes franjas de ouro
Sem terem defeito nenhum.
Belas músicas ouvi
Que estavam na capela mor
El Rei as presenciava
Que não podiam estar melhor.
Parecia um céu aberto
Este templo real
Com umas suaves vozes
Que eu ouvia cantar.
Era uma suspensão
Os órgãos quando tocavam
Os sinos tudo a um tempo
nas mesmas vozes soavam.
Pareciam ser os Anjos
Que eu ouvia cantar
No sacrifício da missa
Que era de pontifical.
Oh! Mafra tu és sereia
Em este mar d’ alegria,
Pois teu doce cantar
Neste Templo se via.
Se o cantar das sereias
Suspende embarcações
Também tu Mafra agora
Rendes muitos corações.
Não há Monarca no mundo
Como el Rei de Portugal
Serviu a estes frades à mesa
Para mais se humilhar.
E para melhor dizer tudo
Trazia o comer à mesa
Deitando-lhe água às mãos
Mostrou a maior grandeza.
Nisto imitou a Cristo
Da última ceia a fineza
lavando os pés aos discípulos
Para nos ensinar humildeza.
Deus aumente este Monarca
Sempre em serviço de Deus
Com paz e quietação
Para aumentar templos seus.
Pois fez uma procissão
Ao Corpo de Deus dedicada
Com tal pasmo e tal beleza
Que a todos admirava.
As ruas da procissão
Estavam juncadas com bizarria
De espadanas e giestas
E rosas de Alexandria.
Desta procissão que digo
Não tenho mais que dizer.
Que a que se faz na Corte
Não tinha tanto que ver.
Ao recolher da procissão
Se deu uma salva real
Em louvor do Santíssimo
E del Rei de Portugal.
Esta salva quem a deu
Foi a nobre infantaria
Entre batalhões metidos
Muitos de cavalaria.
Grande fortuna tiveste
Ó Mafra vila real
Em este Monarca quinto
Para tanto vos aumentar.
Se algum tempo te dizia
Que eras o matadouro
Agora te hei-de dizer
Que és do céu o tesouro.
Se te dizia algum dia
Que eras conquista, guerra
Agora te chamarei
Palácio de Deus na Terra.
Se algum tempo te dizia
Que davas grande pavor
Agora te chamarei
Palácio del Rei meu Senhor.
Se te dizia algum tempo
Que aos homens enfadavas
Agora de hoje em diante
Emendarei minhas faltas.
Se algum tempo te disse
Que não tinhas misericórdia
Já desde agora te digo
Que és Vénus da glória.
Se te disse algum tempo
Que tinhas grande brasão
Agora Mafra te peço
Humildemente perdão.
Darei notícia da gente
Que nesta obra se via
De uma relação tirada
Da ilustre vedoria.
No militar presépio
Em o primeiro lugar
Que são sete mil infantes
Nesta obra a trabalhar.
Dos soldados de a cavalo
Também notícia vou dando
Que são mil e novecentos
E noventa trabalhando.
[falta esta linha]
Que às vezes o desejamos
Mas em nos chegando os narizes
De podre e cru o largamos.
Todo o pão que El Rei nos dá
de branco é descorado
O que é do Assentista
é muito mal amanhado.
[A]inda falo na vaca
que nos dão crua e pouca
[a]inda que se entorne o caldo
não nos ensopa a roupa.
Falaremos no capado
que por ele nos dão bode,
não há mister purgado
quem tal carne come.
Em falarmos nos feijões
não somos mal procedidos,
que se cozem às dez horas
são mui mal escolhidos.
Comemos boa [var.: arroz e] pescada
Como uns padres de missa
Mas eu não sei se dizem
Que é cavala sediça.
Também nos dão um guisado
De cachola de vaca às maravilhas
Mas o mais comum que nos dão
É um pequeno prato de ervilhas.
No vinho não falemos
Que não presta para nada
Pode servir de vinagre
Para temperar a salada.
Em todo este trabalho
Este é o maior tormento
Quando vamos à taverna
Já lá falta o mantimento.
Ainda temos outros fadários
Que aqui mais nos mortificam
Pulgas e moscas são tantas
É o que aqui mais nos picam.
Ratos não falemos nisso
Que é pasmar o entendimento
Mais de duzentos se acham
Aqui em cada aposento.
[falta esta linha]
Que é muito boa bebida
Mas primeiro que a bebamos
É o alicorne metida.
Pois a bebemos por uns copos
Bem contra nosso desejo
São de madeira do ar
Criados no Alentejo.
Estão presos por cadeias
Não são de ouro nem de prata
São feitas de um duro ferro
Não cuideis que é patarata.
Em se tocando um sino
A que o bandarra chamam
Mais do que pulo ou pancada
Para o trabalho nos manda.
Mas em se tocando outra vez
sinal para irmos a comer
Mais que de carreira vamos
A toda a pressa a correr.
E o que tem o pé mais pesado
Que não pode caminhar
Quando chega à taverna
Já não acha que jantar.
Quatrocentos taverneiros
estão em Mafra obrigados
e na nobre Vedoria
todos matriculados.
Tenho dito quanto posso
De Mafra não digo nada
Que a grandeza desta obra
Não pode ser explicada.
Tenho dito quanto sei
e fiz aqui conclusão [var.: Eu o não torno a repetir]
venham todos ver a obra [var.: Quem quiser saber a verdade]
Verão se minto ou se não [var.: Pode a Mafra também ir]
Com isto não digo mais
Que isto muito mal me cheira
Que me quero esgueirar
E ir-me com a Senhora da Esgueira.
Finis laus Deo (Décima)
Mafra mil vezes ditosa
Mui feliz e esplêndida
Sois mui linda cândida
A bonina mais excelente
Frequentado de tanta gente
A flor mais formosa
Em tudo me pareceis rosa
Pois vos quero engrandecer
Que todos podem dizer
Victor ó Mafra famosa.
Manuscrito pertencente ao Padre Alexandre, conhecido de Júlio Ivo e estudado por Ernesto Soares, In illo tempore, in O Concelho de Mafra (15, 22 e 29 de Ago. e 5 Set. 1936). O cotejo com o ms. 3029 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, revelou algumas variantes, das quais apenas deixo anotadas as mais relevantes.